terça-feira, 13 de agosto de 2013

o cuidado conosco mesmo, enquanto cuidamos do outro


"Alguém me tocou. Porque eu senti que de mim saiu poder." Lucas ( 8, 46)

Quando lidamos com o cuidado do outro (na pastoral, na terapia, no quarto de hospital, em casa...), corremos o risco de nos perdermos do que somos. Lembram da mulher que tocou Jesus? Ela encheu-se de coragem e o tocou, nem queria que ele percebesse. Mas percebeu. Jesus diz aos seus discípulos: "Alguém me tocou!".  Ele sentiu que havia lhe "saído poder". Quando entramos em contato com a dor de uma outra pessoa, podemos ser "roubados" em nossas energias vitais. E não é por maldade que isso acontece, é por fome, fome de vida, de atenção, de carinho. Nos tocam, nos olham, falam conosco e estão em busca de forças para continuar -- nessa dinâmica, se não tivermos cuidado, nossa identidade se funde com o outro, com sua dor, sua história. É preciso saber que a dor do outro não é a nossa.  É como experimentar um sapato para ver onde aperta e depois devolve-lo. Já temos nossos próprios sapatos, nossos calos e nossas dores pessoais para dar conta. O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, enquanto estava preso durante a segunda guerra, escreveu um poema belíssimo em que termina poetizando "Quem sou eu? As perguntas solitárias se riem de mim. Seja quem for, Tu me conheces, sou teu oh Deus!"
 
Quem sou eu?
Quem sou eu? Dizem-me muitas vezes
Que saio da minha cela, sereno, risonho e seguro,
Como um nobre no seu palácio.

Quem sou eu? Dizem-me muitas vezes
Quando falo com os meus carcereiros livre,

amistosa e francamente,
Como se mandasse eu.

Quem sou eu? Dizem-me também
Que suporto os dias de infortúnio
Com impassibilidade, sorriso e orgulho,
Como alguém acostumado a vencer.

Sou realmente o que os outros dizem de mim?
Ou só sou o que eu mesmo sei de mim?
Intranquilo, ansioso e doente,
Como um pássaro enjaulado respirando com dificuldade a vida,
Como se me oprimissem a garganta,
Faminto de cores, de flores, de cantos de aves,
Sedento de boas palavras e de proximidade humana,
Tremendo de cólera diante da arbitrariedade,
Agitado pela espera de grandes coisas,
Impotente e temeroso pelos amigos na infinita distancia,
Cansado e vazio para orar, pensar e criar,
Esgotado e disposto a despedir-me de tudo?

Quem sou eu? Este ou aquele? Serei hoje este, amanhã outro?
Serei os dois de cada vez? Diante dos homens um hipócrita
E diante de mim mesmo um desprezível e queixoso débil?
Ou talvez o que ainda resta de mim se assemelha
A um exército derrotado que se retira em desordem
Sem a vitória que considerava segura?
Quem sou eu? As perguntas solitárias se riem de mim.
Seja quem for, Tu me conheces, sou teu oh Deus!
(Dietrich Bonhoeffer)

 

 

 

 

 

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O sentimento de abandono



 Desde o meu nascimento, fui entregue aos teus cuidados; desde que nasci, tu tens sido o meu Deus.
Salmo 22.10

 
Por que Deus me abandona justo quando preciso tanto? Perguntamo-nos e perguntam-nos os outros. E a resposta não vem.
Um personagem quase sempre lembrado quando se fala em sofrimento e paciência é Jó. Mas ele também se rebela e reclama: “Não posso ficar calado. Estou aflito, tenho de falar, preciso me queixar, pois o meu coração está cheio de amargura. Eu prefiro ser estrangulado; é melhor morrer do que viver neste meu corpo. Detesto a vida; não quero mais viver. Deixa-me em paz, pois a minha vida não vale nada” (Jó 7.11,15-16). É o lamento de alguém machucado, de alma esfacelada, derrubado pela vida. Poderia ser eu ou você.
Jó viu seus filhos morrerem, perdeu suas propriedades e sua saúde foi deteriorando. Além de todas as dores e perdas, pesa sobre ele a suspeita dos amigos e da esposa de ter culpa pelo que está acontecendo. Esse Jó desolado clama: “Estou cansado de viver. Vou me desabafar e falar da amargura que tenho no coração. Ó Deus, não me condenes!” (Jó 10.1-2). “Por que os infelizes continuam vendo a luz?”, queixa-se Jó (3.20). A desgraça é tanta, que ele amaldiçoa o dia em que veio ao mundo. Um homem arruinado, que confessa sua fé, revolta-se, chora sua dor e briga com Deus. Sim! Jó chama Deus para uma conversa e questiona-o sobre seu triste destino.
O drama de Jó tem início numa disputa entre Deus e o diabo. Este aparece numa reunião de anjos na qual Deus chama a atenção para seu devoto servo Jó. O diabo, no entanto, não se entusiasma e retruca: “É a troco de nada que Jó teme a Deus? Mas se tirares tudo o que é dele, verás que ele te amaldiçoará sem nenhum respeito” (Jó 1.11).
E para o estranhamento de quem lê, Deus permite que o diabo tire tudo de Jó. Por mais terríveis que sejam os acontecimentos, Jó ainda reage com certa serenidade dizendo a tradicional expressão do luto judaico: “O Senhor deu, o Senhor tirou; louvado seja o seu nome!” (Jó 1.21). Deus permite, então, que o diabo intervenha mais uma vez, agora afligindo Jó em seu próprio corpo. Nesse momento, a esposa aconselha-o que talvez fosse melhor amaldiçoar esse Deus que o deixa estar nessa penúria. Ele não chega a amaldiçoar, mas entra em um difícil tête-à-tête com Deus, que lhe fala do meio de uma tempestade. Sim, em meio às tempestades Deus fala.
Deus manda que Jó escute o que está falando. Escutar-se nas orações, isso é terapêutico, é necessário. É um exercício para nós nos ouvirmos a nós mesmos e conseguir, assim, tomar distância do carrossel de sofrimentos e auto piedade.
Jó confessa: “Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com meus próprios olhos” (Jó 42.5).
 Quando passamos por sofrimentos difíceis e, depois de tudo, ainda conseguimos ficar de pé, abre-se uma inacreditável janela para a vida.
(Texto do meu livro "Quando a vida dói" -  livro que será lançado nas próximas semanas pela Editora Sinodal.)

 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

A fé não pode ser cega, nem faca amolada


(Do livro: "Quando a vida dói - livro que será lançado nas próximas semanas pela Editora Sinodal)
 
Milton Nascimento canta: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada. Agora não espero mais aquela madrugada. Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada. O brilho cego de paixão é fé, faca amolada”. A fé cega é faca amolada. Sendo cega, a fé torna-se fundamentalista e absurda. Sendo cega, torna-se faca amolada que corta, fere, maltrata e afasta.
Fé é essencialmente confiança e entrega. “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito!” (Lucas 23.46) – uma das palavras ditas por Jesus na cruz nos convoca para a importância da descoberta pessoal de que somente uma entrega total nas mãos do Pai pode salvar verdadeiramente de uma vida sem sentido. Mas em questões de fé, seremos sempre aprendizes: “Mal tenho começado a crer. Em coisas de fé, vou ter que ser aprendiz até morrer”, confessa Martim Lutero. Ou como escreve Viktor E. Frankl, referindo-se aos acasos da vida: “Sou burro demais para explicá-los, mas inteligente demais para negá-los”.
Vivemos numa sociedade onde milagres são oferecidos em uma espécie de promoção, e a prosperidade é assegurada como sinal de bênção divina. E, assim, vamos afastando-nos dos sinais verdadeiros que se mostram de forma pequena e simples. Como diz o teólogo luterano Lothar C. Hoch: “O cristão protestante precisa estar aberto para o mistério do silêncio de Deus diante da dor e do sofrimento mais cruéis. Essa foi a experiência de Jesus”. Não é o fato de sermos bons que garante a intervenção de Deus, e não podemos fazer de Deus um “quebra-galho”, como alerta Dietrich Bonhoeffer.
Solange repetia incansavelmente o versículo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. Mesmo quando já estava encolhida – como um passarinho machucado com a queda – em sua cama, ela sussurrava: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. Algumas vezes, pedia que eu lesse a passagem do Evangelho de Lucas onde Jesus, em agonia, se entrega nas mãos do Pai. Depois que eu lia, ela me olhava e dizia: “Até com Ele, né? A vida não foi fácil nem para o Filho de Deus, imagina, então, para mim, que sou uma pobre mortal. Dureza esta vida! Mas não há de ser nada. Bola pra frente!”. Quando ainda estava com forças para entrar em entreveros com Deus, disse: “Quando eu morrer (sei que vou morrer) e chegar lá, e se esse “lá” não for o céu, eu juro que volto e coloco Deus no Procon!”.
Solange foi uma mulher maravilhosa, incrivelmente ativa, mas em seus últimos dias preferiu a escuridão das cortinas fechadas. Silêncio no quarto era seu maior desejo. Queria gente de poucas palavras lhe fazendo companhia. Costumava dizer a quem se punha a tagarelar, recitando textos sagrados para animá-la ou contar sobre a vida do lado de fora do quarto: “Todas as palavras já foram ditas, não há mais o que dizer. Vocês falam tanto, que não consigo ouvir Deus. Quando todos param de me trazer receitas prontas de vida ou de salvação, então, quando tudo se cala, eu consigo ouvi-lo. É entre eu e Ele”.
Talvez Solange tenha entrado em contato com uma realidade que só os místicos compreendem. O frade dominicano Eckhart de Hochheim (1260-1328), mais conhecido como Mestre Eckhart, um místico, propõe que o silêncio é a coisa mais semelhante a Deus. Ora! Quem já fechou os olhos diante do silêncio da natureza e ali se sentiu fazendo parte de uma dimensão muito maior, quem sabe, sentindo-se integrado à transcendência, sabe do que Eckhart está falando.
Quanto à Solange, ela já se foi, não tive notícias dela ter passado pelo Procon, acredito que ela tenha chegado lá.
Há momentos em que somente nos cabe dobrar os joelhos e dizer: “Ó Senhor, cura-me, e ficarei curado; salva-me, e serei salvo, pois eu canto louvores a ti” (Jeremias 17.14). Quando pronuncio a palavra Deus, não pronuncio palavra que diz coisas óbvias e controláveis do dia a dia. Não. Não é palavra ao lado de outras palavras. É uma palavra que carrega o inefável, o indizível, o indefinível. Por isso é Deus.
 
 


  





[1] PARKES, Colin Murray. Luto – estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998. p. 30.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Fé é a força inversa ao medo


 
 

Nada a temer. Senão o correr da luta.

Nada a fazer senão esquecer o medo.

Abrir o peito à força. Numa procura.

Milton Nascimento

 

Fé é a força inversa ao medo, é a frase pintada em uma pequena tabuleta que de cima de minha mesa rouba o olhar de quem busca refúgio para suas dores em minha sala. Ter fé é não ter medo de confiar a luta a Deus. Para o pai que chora a morte da filha Jesus recomenda: “Não tenha medo; tenha fé!” (Marcos 5.36). Confiando, Davi enfrentou Golias. Confiando, Maria disse “sim” ao anjo Gabriel quando ele lhe anunciou a gravidez (Lucas 1.26-38). Maria teve medo, sabia que era impossível, afinal não havia tido relações com homem nenhum. Mas, acima de tudo, confiou: “Não tenha medo, Maria! Deus está contente com você” (v. 30). Maria responde confiante: “Eu sou uma serva de Deus; que aconteça comigo o que o Senhor acabou de me dizer!” (v. 38).
Diferente foi quando o mesmo anjo Gabriel apareceu para Zacarias, também anunciando o nascimento de uma criança. Zacarias viu o anjo e ficou com medo (Lucas 1.5-25). Diz o texto que ele não sabia nem o que dizer diante da aparição do anjo. Contra o anúncio do anjo, Zacarias tinha a sua idade avançada. Sua esposa também já era idosa. O anjo pediu que não tivesse medo: “Não tenha medo, Zacarias, pois Deus ouviu sua oração!” (v. 13).
Maria confiou mais no anjo do que na impossibilidade. Zacarias confiou na impossibilidade. Não havia palavra que descrevesse seu espanto diante daquela notícia. Não tinha palavras. Ficou mudo. Quando nasceu seu filho João – que mais tarde se tornaria João Batista –, as palavras voltaram a borbulhar da boca de Zacarias. E quem disse que também não temos nossos momentos “ver para crer”? Algumas vezes, somos assim meio Zacarias, meio Tomé.
E José, o noivo de Maria? Esse, então, teve que ter confiança em Deus e uma profunda confiança em seu amor por Maria, para que não fizesse uma loucura. Ele confiou e aceitou Maria, apesar de tudo. Que ventos benfazejos não sopraram naquela manhã em que José acordou de seu sonho e disse a Maria que casaria com ela. Ora, estava grávida e não era dele o filho, era uma situação constrangedora para o pobre homem. José saltou no desconhecido, foi uma escolha feita por amor. Amor é também um ato de fé no outro. Fé é isto: uma prova de que existem coisas que não podemos ver (Hebreus 11.1-2).O indiano Rabindranath Tagore poetiza: “Fé é pássaro que canta quando a noite ainda está escura”. Nas palavras da médica e psicanalista francesa Françoise Dolto, fé “é viver cada dia, cada provação, cada alegria e toda a minha vida. É também aceitar a realidade que a anima, ainda que eu não a conheça e não possa saber o que ela me trará. É, portanto, viver na realidade e agir”. Martim Lutero acredita que fé seja, sobretudo, confiança na bondade e misericórdia de Deus – a confiança que podemos depositar no Criador.
Fé é confiança na possibilidade do impossível. É confiança no Absolutamente Outro. Fé é sentir-se dependente, desde as entranhas, unicamente de Deus.
Ao dizer “tua fé te salvou”, Jesus parece estar convocando para uma confiança sem reservas. Em algumas das curas, como a da filha de Jairo, ele convida para estar com ele somente aquelas pessoas que desejavam o impossível – a cura diante da morte (Marcos 5.21-42) e os discípulos mais chegados.
(texto de Vera Cristina Weissheimer)

sábado, 29 de junho de 2013

O sofrimento desorganiza


(texto de Vera Cristina Weissheimer)
Sofrimento é o que nos desorganiza, tira o chão – é tempestade que arrasa. E depois de tudo, só resta juntar tijolo por tijolo, caco por caco e reconstruir, como fizeram as mulheres que ficaram conhecidas como “as mulheres dos escombros” (Trümmerfrauen) na Alemanha. Depois da Segunda Guerra Mundial, a maioria das cidades estava destruída, e as mulheres começaram a separar tijolos dos escombros para reconstruir suas vidas, casas e cidades. Era comum encontrar, nesses grupos, até mesmo mulheres de 80 anos.
Reconstruir é sempre possível, não sobre os escombros, negando-os como se não existissem, varrendo a dor e o sofrimento para debaixo de algum tapete. Ao contrário, é preciso aceitar a destruição para poder, a partir dela, encontrar matéria-prima para uma reconstrução. Chega o momento em que é preciso olhar o que restou e ali vislumbrar a vida possível. É preciso uma reconciliação com o passado, com nossos sonhos, pesadelos e amores desfeitos, afirma o psicanalista Abrão Slavutzky, pois só assim é possível abrir-se para o amanhã. Fazer as pazes com o passado para podemos seguir em frente.
Não só com alegrias, altos, ganhos e sucessos que vamos escrevendo e reescrevendo;  construindo e reconstruindo nossa vida; as tristezas, os baixos, as perdas, os fracassos são importante matéria-prima. Reconciliar-se com a parte dura, doída de nossa história é indispensável para se conseguir ir adiante e não ficar empacado diante de uma árvore quando a floresta toda está ali ao nosso redor.
Sim, as noites estão prenhes de boas novas. Essas ficam visíveis ao amanhecer. Mas ninguém sabe o dia que nascerá enquanto ainda está na noite. Em nossos tempos de escuridão há um germe do qual poderá nascer um novo sentido, um novo dia e outros significados para a vida. Mas o germe poderá também ficar para sempre na possibilidade do que poderia ter sido. Quem passa pelo sofrimento sem encontrar esse germe fica para sempre na madrugada, só na perspectiva, sem conseguir sair da escuridão, sem nunca chegar ao amanhecer. Quem, no entanto, viver esse encontro sairá de sua noite tendo encontrado o seu amanhecer.
Nenhum sofrimento vai durar para sempre. Eu sei! A alegria também não. Para o poeta e compositor Vinícius de Moraes, o “sofrimento é o intervalo entre duas alegrias”. Assim é a vida. A felicidade, a alegria, a esperança não são um fim em si, são caminhos, são exercícios, e é preciso caminhar sempre. A alegria contagia, mas a tristeza e o sofrimento também. Sofrimento também pode ser vício – quando alguém se ocupa com sua dor como se fosse o único a padecer. Não consegue se liberar para a vida, porque o sofrimento passou a ser o significado da própria vida – constrói um cemitério particular, ali vai enterrando os dias, os sonhos, os planos não realizados, e vai se enterrando junto um pouco mais a cada dia.
Encarar o sofrimento é deixar-se questionar por ele: Por que estou sofrendo? O que está doendo? O que impede que eu pare de sofrer? Para que estou sofrendo o que sofro? O que esta dor pode me ensinar? Estou disposta a aprender a lição? Responder a essas perguntas é um bom começo na busca pela matéria-prima para uma reconstrução

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Oração é conexão
(Vera Cristina Weissheimer)





Oração é uma conexão, um fio condutor com um Poder que é Superior, uma força que perpassa a história humana e os seus destinos. A oração autêntica transforma a realidade, um encontro do qual não saímos como chegamos. Para os dias cheios em que nos convencemos não ter tempo para uma prece, Martim Lutero aconselha orar por mais tempo. Sobre isso escreveu: “Atualmente estou tão ocupado que não posso passar menos de quatro horas por dia na presença de Deus”. Há dias em que precisamos pedir como profeta Isaías: “Fortalecei as mãos frouxas, e firmai os joelhos vacilantes” (Isaías 35.3).
Rubem Alves chega a dizer que as pessoas estão procurando tanto por terapia por que desaprenderam a fazer suas orações. “Falam sobre outras coisas, 10 mil coisas. Não sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos, por traz de nossa tagarelice está escondido o desejo de orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única palavra que importa”, escreve ele. Viktor Frankl já escreveu sobre isso afirmando que a terapia e a fé caminham de forma parceira, uma pretende curar a alma e a outra salvá-la. Citando o poeta T.S.Elliot, Rubem Alves dá nome ao que, segundo ele, esquecemos: “temos conhecimento do movimento, mas não da tranquilidade; conhecimento das palavras e ignorância da Palavra”. As pessoas desaprenderam a se ouvir e a ouvir o que o silêncio é capaz de trazer. Jesus, por exemplo, retirava-se para lugares solitários, para ali buscar o encontro com o Pai em oração (Lucas 5.16). Em geral, as pessoas andam desaprendendo a ir ao encontro de si mesmas e de Deus.
Há um texto no livro de Gênesis em que Deus diz a Abraão: “Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa do seu pai e vá para uma terra que eu lhe mostrarei” (Gênesis 12.1). Quando olhamos essa passagem dos textos sagrados no original hebraico, encontramos a frase: Lech (vai) Lechá (a ti mesmo). O rabino Nilton Bonder escreve de forma primorosa sobre esse texto em seu livro Tirando os sapatos – uma espécie de diário de viagem pelos caminhos de Abraão. Para o rabino, a tradução mais verdadeira desse texto seria: Vai até ti mesmo. Ir até nós mesmos é uma tarefa que nos leva até desertos e infernos pessoais difíceis de encarar, mas ignorá-los causa mais dor do que colocar-se a caminho para atravessá-los.
Conta-se que um obstinado observador perguntou para um fundidor de ouro e prata como ele sabia que tanto o ouro e a prata estavam prontos, separados das sujeiras que traziam consigo. O fundidor, então, respondeu ao curioso: “Quando eu me debruço sobre o ouro ou a prata e consigo reconhecer ali o meu próprio rosto, então eles estão separados das impurezas”.
Para que esse processo tenha êxito é preciso que o ouro e a prata passem por um fogo em alto grau. Para nos desintoxicarmos das sujeiras que acumulamos é preciso, muitas vezes, também passar pelo fogo. A obra de Deus também se manifesta na dor. Não é necessário que seja assim, mas na maioria das vezes somente nos tornamos capazes de ouvir nossa voz interior quando passamos pelo fogo. Aqui vale o ditado popular: “o que não aprendemos pelo amor, acabamos aprendemos pela dor”.
A mais comovente confissão de fé que já ouvi foi dita por um dos 33 mineiros ao sair da mina onde ficou soterrado por 70 dias, no deserto do Atacama, no Chile, em 2010. Ele esteve no inferno, ao respirar novamente a luz foi capaz de dizer: “Estive com Deus e o diabo, mas Deus ganhou!”.
Quando nos conectamos com Deus somos empoderados de forças que não são nossas, e que não se acabam com a facilidade com que nosso entusiasmo ou nosso otimismo se esvanece. Como escreve o pesquisador Donald Spoto, citando o filósofo William James, “já foram aventadas muitas razões para que não rezemos, e muitas outras para defender a necessidade da oração. Mas, em todo esse debate, muito pouco se diz sobre o motivo pelo qual rezamos. Rezamos simplesmente porque não podemos deixar de fazê-lo”.
A busca por um relacionamento íntimo com Deus é também expressa na poesia do filósofo Martin Buber: “Se crer em Deus significa poder falar dele na terceira pessoa, então, não creio em Deus. Se acreditar nele significa poder falar com ele, então eu creio em Deus”.