terça-feira, 6 de agosto de 2013

O sentimento de abandono



 Desde o meu nascimento, fui entregue aos teus cuidados; desde que nasci, tu tens sido o meu Deus.
Salmo 22.10

 
Por que Deus me abandona justo quando preciso tanto? Perguntamo-nos e perguntam-nos os outros. E a resposta não vem.
Um personagem quase sempre lembrado quando se fala em sofrimento e paciência é Jó. Mas ele também se rebela e reclama: “Não posso ficar calado. Estou aflito, tenho de falar, preciso me queixar, pois o meu coração está cheio de amargura. Eu prefiro ser estrangulado; é melhor morrer do que viver neste meu corpo. Detesto a vida; não quero mais viver. Deixa-me em paz, pois a minha vida não vale nada” (Jó 7.11,15-16). É o lamento de alguém machucado, de alma esfacelada, derrubado pela vida. Poderia ser eu ou você.
Jó viu seus filhos morrerem, perdeu suas propriedades e sua saúde foi deteriorando. Além de todas as dores e perdas, pesa sobre ele a suspeita dos amigos e da esposa de ter culpa pelo que está acontecendo. Esse Jó desolado clama: “Estou cansado de viver. Vou me desabafar e falar da amargura que tenho no coração. Ó Deus, não me condenes!” (Jó 10.1-2). “Por que os infelizes continuam vendo a luz?”, queixa-se Jó (3.20). A desgraça é tanta, que ele amaldiçoa o dia em que veio ao mundo. Um homem arruinado, que confessa sua fé, revolta-se, chora sua dor e briga com Deus. Sim! Jó chama Deus para uma conversa e questiona-o sobre seu triste destino.
O drama de Jó tem início numa disputa entre Deus e o diabo. Este aparece numa reunião de anjos na qual Deus chama a atenção para seu devoto servo Jó. O diabo, no entanto, não se entusiasma e retruca: “É a troco de nada que Jó teme a Deus? Mas se tirares tudo o que é dele, verás que ele te amaldiçoará sem nenhum respeito” (Jó 1.11).
E para o estranhamento de quem lê, Deus permite que o diabo tire tudo de Jó. Por mais terríveis que sejam os acontecimentos, Jó ainda reage com certa serenidade dizendo a tradicional expressão do luto judaico: “O Senhor deu, o Senhor tirou; louvado seja o seu nome!” (Jó 1.21). Deus permite, então, que o diabo intervenha mais uma vez, agora afligindo Jó em seu próprio corpo. Nesse momento, a esposa aconselha-o que talvez fosse melhor amaldiçoar esse Deus que o deixa estar nessa penúria. Ele não chega a amaldiçoar, mas entra em um difícil tête-à-tête com Deus, que lhe fala do meio de uma tempestade. Sim, em meio às tempestades Deus fala.
Deus manda que Jó escute o que está falando. Escutar-se nas orações, isso é terapêutico, é necessário. É um exercício para nós nos ouvirmos a nós mesmos e conseguir, assim, tomar distância do carrossel de sofrimentos e auto piedade.
Jó confessa: “Antes eu te conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com meus próprios olhos” (Jó 42.5).
 Quando passamos por sofrimentos difíceis e, depois de tudo, ainda conseguimos ficar de pé, abre-se uma inacreditável janela para a vida.
(Texto do meu livro "Quando a vida dói" -  livro que será lançado nas próximas semanas pela Editora Sinodal.)