sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A morte é uma travessia? - carta a um amigo querido

um acréscimo posterior ou uma reação ao texto abaixo: um amigo querido, estando ainda tomado pelo luto por causa da morte recente da mãe, me fez alguns questionamentos em relação ao termo "travessia". Então, achei que seria interessante colocar alguns pensamentos aqui. Transcrevo parte da carta que enviei a este amigo, espero que ajude na reflexão sobre morte, ressurreição, reencarnação.

Olá, querido,
 
te entendo bem... Compartilho contigo que,  nos acompanhamentos  que fiz, eu ia sendo confrontada com uma realidade que me era desconhecida.  A morte - quase sempre - não acontece num instante. (Escrevo "quase sempre", porque não tem como saber ou entender "tudo" do "todo"). É um processo em que o corpo vai dando seus sinais, tem até a conhecida "melhora da morte", reconhecida pelas equipes de saúde; aquela melhora em que o paciente tem tempo para falar, se despedir, encaminhar... É um processo em que a pessoa vai se dando conta de sua morte, é um silenciar. É de fato um processo, um atravessar daqui para uma realidade que não conhecemos - se vamos dormir nos braços do Pai, ou vamos para um sono eterno até a ressurreição, ou ressuscitamos no ato da morte...  são sempre só conjecturas a partir da fé. Como será de fato não temos como saber, são os mistérios entre o humano e o divino, que não foram dados a conhecer. Nos resta CRER que DEUS estará conosco. Como disse-me uma paciente indo para uma cirurgia: "Vou morrer e tenho medo, mas sei que o Pai está comigo".  O que sei a partir de muitos momentos em que estive ao lado de pessoas que estavam morrendo, é que realmente é um processo como a de uma travessia. Mesmo quando a morte é rápida como em acidentes trágicos, ainda há relatos dos sobreviventes que, quem morreu ainda procurou pela mão de quem estava ao seu lado, num gesto de despedida ou de apoio. Quando a minha mãe morreu , de forma súbita, ela chamou pelo meu pai.
Comecei a ler e pesquisar mais sobre o tema na medida em que ia sendo confrontada com as mortes e os questionamentos.  Publico os textos aqui para provocar essa discussão, pois são temas controversos e, em muitos casos, ainda tabu. É melhor não falar de morte para não atraí-la, pensam alguns; não falando dela não temos que lidar com ela; ressurreição e reencarnação são assuntos de religião e religião não se discute. Tu, querido, amigo, fizeste me uma pergunta que talvez muitos gostariam de ter feito, mas as deixaram pululando como pulgas atrás de suas orelhas.
 
 O que penso sobre ressurreição tem base e raízes no Evangelho: ela nos liberta e não nos escraviza a ter que retornar inúmeras vezes. Deus nos deu este tempo -  8 dias, 8 semanas, 8 meses, 8 anos ou 80 sempre terá sido o tempo dado para viver a VIDA de forma mais preciosa possível. Nas lápides das sepulturas, temos um sinal muito simbólico (* 12.09.1889 ________ 12.09.1975+), repare que o que separa a data de nascimento da data da morte é uma traço, a nossa vida é aquele traço. E é o que temos e isso não é pouco nem desanimador, é um presente maravilhoso.
 Quando morremos e cremos na ressurreição entramos para uma realidade que nos leva a uma porta aberta. Nossa fé cristã nos oferece a liberdade do Evangelho, da porta de se abre para a Eternidade. Jesus diz: "Eu sou a porta...". Como isso será? Amigo! Isso pertence a Deus e é bom deixar Deus ser Deus. Escreves que tua mãe "dedicou a vida toda à palavra da Salvação e Ressurreição em Cristo".  Todas as pessoas que acompanhei e que morreram crendo na Ressurreição, e na Salvação que emana da Graça das Mãos Divinas e que não é mérito nosso, morreram com uma esperança quase que inexplicável. A fé definitivamente não é uma ciência exata.
 
Querido amigo, obrigada por provocar essa minha reflexão.
Um grande abraço, onde possas caber inteiro com tua dor e tua saudade.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A espiritualidade no Cuidado Paliativo


(texto de Vera Cristina Weissheimer)
Nossa cultura latino-americana é carregada de significantes religiosos que são trazidos para dentro do ambiente hospitalar e não só pelos pacientes, também pelas equipes de saúde. Quando, para o paciente parece surgir uma caminho sem volta e para a família a cura parece ser “sonhar um sonho impossível, como poetiza Chico Buarque, surge aquela situação em que costuma aparecer a frase: “Não há mais o que fazer”. Foi o marido de uma paciente que melhor definiu a importância da espiritualidade. Ele me procurou e disse: “Me disseram que não há mais o que fazer, mas eu sei que há. Você me ajuda a ajudar a minha esposa?"
Perguntei a outra paciente: "O que posso fazer por você?"; e ela abriu  com vagar os olhos  cansados e disse: "Me deixe quieta... preciso do silêncio, só isso." Havia, no entanto, naquele quarto, quem quisesse fazer orações intermináveis, havia quem quisesse ver a novela da tarde, havia quem no intuito de ser companhia para a paciente, estava jogando dominó numa pequena mesa ao lado de uma imagem de Nossa Senhora. Mas ninguém lembrou de tentar saber o que a paciente queria. Ela que está em passos vagarosos, e está ciente disso, fazendo a sua travessia, pediu por silêncio. A leucemia tomou conta de cada célula. 
Ao ouvir o pedido da paciente, fui tomada  por um constrangimento doído. Somos  egoístas. Não admitimos que a morte faça parte de nossa vida, e não admitimos que nossos mais queridos tenham que morrer. "Afinal, de alguma coisa temos que morrer", disse me outra paciente.
Ela pedia por silêncio. Ora, o silêncio tem sons de poesia, tons de reverência diante do Divino. O silêncio ajuda no-encontro-conosco-mesmos, "pode ajudar-nos a ganhar distância em relação às nossas raivas e rancores", escreve Anselm Grün. O silêncio verdadeiro e meditativo nos põe em contato com nossos desencontros, e desenganos e por isso é curativo. Porque  nos unge com a graça da re-conciliação com nossa alma - aquela parte em nós, onde cada um é como é, sem máscaras e meias verdades.  Esse encontro mais profundo é importante, é preciso paz para essa caminhada.
Silêncio também queria o paciente que deixou numa carta as instruções para seus penúltimos momentos -- sim, penúltimos, porque últimos, não sabemos quais, quando ou como serão. Queria todo mundo ao seu redor e a música que deveria tocar no quarto até ele parar de respirar deveria ser  "O Silêncio", de Beethoven. E assim foi feito. 

Escrevo isso para homenagear todos aqueles e aquelas que estão fazendo sua caminhada e nem sempre tem seu desejo de silêncio e quietude respeitadas.


(Dica de leitura: "As exigências do silêncio" de Anselm Grün)
-------------------------