terça-feira, 30 de outubro de 2012

Nenhum sofrimento vai durar para sempre

(texto de Vera Cristina Weissheimer)



Sofrimento é o que nos desorganiza, nos tira o chão. Tempestades que arrasam tudo. E, depois de tudo só nos resta juntar tijolo por tijolo, caco por caco e reconstruir. Como fizeram as mulheres dos escombros (Trümmerfrauen) na Alemanha após a Segunda Grande Guerra – separavam os tijolos dos escombros para reconstruir vidas, casas, cidades. Era comum encontrar nesses grupos, até mesmo, mulheres de 80 anos.

A reconstrução é possível, não sobre os escombros, negando a dor, varrendo o sofrimento embaixo de algum tapete. Ao contrário, é preciso aceitar a destruição, para poder, a partir dos escombros, encontrar matéria prima para uma reconstrução. Chega o momento em que é preciso olhar o que restou e ali vislumbrar a vida possível.

“A vida de cada um pode ser escrita pelas perdas que vai tendo ao longo dos tempos. Reconciliar-se com essa dura e traumática realidade é indispensável para viver mais ou menos bem”, escreve o psicanalista Abrão Slavutzky. Para ele, é preciso uma reconciliação com o passado, com sonhos e pesadelos, os amores desfeitos, resistir às loucuras humanas, pois só assim é possível abrir-se para o amanhã.

Slavutzki tem razão, as noites estão prenhes de boa novas que vem com o amanhecer. Mas ninguém sabe o dia que nascerá. Em nossos tempos de depressão, tristeza, doença, escuridão há um germe de onde poderá nascer um novo sentido, um novo dia, outros significados para a vida. Mas o germe poderá também ficar para sempre na possibilidade do que poderia ter sido. Quem, passa pelo sofrimento sem encontrar esse germe, sairá um tanto vazio de sua estada no deserto. Como se tivesse ficado para sempre na madrugada, antevendo o dia, sem conseguir sair da escuridão e nunca chegar ao amanhecer. Quem, no entanto,viver esse encontro sairá de seu deserto, de sua noite, tendo encontrado algo único, o seu oásis, o seu amanhecer.

Nenhum sofrimento vai durar para sempre. Eu sei! A alegria também não. Para Vinícius de Moraes o “sofrimento é o intervalo entre duas alegrias”. Assim é a vida.

 
Doutor, por que estou doente?


(texto de Vera Cristina Weissheimer)




- Doutor, por que estou doente?
- A válvula do seu coração tem um vazamento.
- É, mas por quê eu?
- Espere, vou chamar o vigário.

O médico Bert Keizer começa o seu livro, Dançando com a morte, com o diálogo acima. Há perguntas para as quais a medicina não tem resposta. Há perguntas para as quais ninguém tem resposta. Assim é a vida. O vigário também não terá as respostas, mas ele terá palavras de conforto. Porque, quando a ciência não tem mais o que dizer, a fé tem palavras que podem consolar, enguer e colocar a caminho novamente. O famoso físico Albert Einstein escreveu que “a ciência sem religião é paralítica, a religião sem a ciência é cega”.

Quando não sabemos mais nada, mas ainda somos capazes de crer, podemos ainda assim dizer: “vamos orar”, e colocar em oração nosso não saber, nossa falta, nossa fragilidade. Assumimos, assim, que sempre chega um momento em que precisamos recorrer a um Poder que é Superior e transcende nossas limitações e finitude. “Não desanimes ante uma batalha perdida. Resta-nos sempre a força da oração de onde nascem a esperança e um espírito de resoluta resistência”; aconselhava Martim Lutero.

Quando a ciência chega ao seu limite, permanece a fé. Uma frase escrita num muro de um cemitério, na zona leste da cidade de São Paulo, dizia: “Onde o ser humano põe um ponto final, Deus põe dois pontos”. Se imaginamos a morte como um dar de cara com um muro, como um fim em si mesmo, é muito triste. Contudo, se imaginamos e cremos que a morte é uma passagem para estarmos nas mãos amorosas de Deus, a morte passa a ser uma porta que abre, não para o nada, mas para um estar com o Criador. Quando a criatura retorna para o Criador. Quando filho, filha, e Pai se encontram num abraço eterno. É quando acordamos nos braços aconchegantes do Pai e Mãe de infinita bondade, que desde sempre nos esperavam. Coisas para as quais não tem comprovação científica, e aí somente podemos dizer como o personagem Chicó do filme Auto da Compadecida , de Ariano Suassuna. Chicó contava histórias e diante do estranhamento do ouvinte ia logo dizendo: “Não sei, só sei que foi assim”. Ninguém tem como afirmar como vai ser após a morte, mas podemos crer. A fé não é da ordem do que se discute. Já bem dizia Agostinho: “A vida da Fé não é um problema para ser resolvido mas um mistério para ser vivido".

Crer é ter evidências sem evidências. Jesus andou sobre as águas. Deus falou com Moisés através de um arbusto em chamas. Abriu no Mar Vermelho uma passagem para que o povo pudesse passar. Fez seu filho nascer de uma mulher. Não buscamos comprovação para isso, simplesmente cremos que são relatos de pessoas de uma fé tamanha que é capaz de transcender séculos e chegar até nós. E dizemos com o personagem Chicó: “só sei que foi assim”. Para Gottfried Brakemeier, os milagres exigem um outro tipo de olhar que “proíbe confundir tais testemunhos de fé com depoimentos objetivos e científicos. Cabe buscar o sentido profundo por trás das narrativas e saber distinguir entre linguagem histórica e religiosa”. Ver ou não ver um milagre é também uma perspectiva. Para o físico Albert Einstein “há duas formas para viver sua vida: uma é acreditar que não existe milagre. A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre”.



Por que comigo?

(texto de Vera Cristina Weissheimer)

“Mês após mês só tenho tido desilusões, e as minhas noites têm sido cheias de aflição. Essas noites são compridas; eu me canso de me virar na cama até de madrugada e fico perguntando: ‘Será que já é hora de levantar?’ O meu corpo está coberto de bichos e de cascas de feridas; a minha pele racha, e dela escorre pus. Os meus dias passam mais depressa do que a lançadeira do tecelão e vão embora sem deixar esperança. Lembra, ó Deus, que a minha vida é apenas um sopro; os meus olhos nunca mais verão a felicidade. Por isso, não posso ficar calado. Estou aflito, tenho de falar, preciso me queixar, pois o meu coração está cheio de amargura. Eu prefiro ser estrangulado; é melhor morrer do que viver neste meu corpo. Detesto a vida; não quero mais viver. Deixa-me em paz, pois a minha vida não vale nada. Por que nos vigias todos os dias e a todo instante nos fazes passar por provas? Quando deixarás de olhar para mim, a fim de que eu tenha um momento de sossego?” (Jó 7.3-7, 11,15,16,18).

É o lamento de alguém machucado, derrubado pela vida. Poderia ser eu ou você, mas este é Jó. Viu seus filhos morrerem, perdeu suas propriedades, e sua saúde foi deteriorando. Além de todas as dores e perdas pesa sobre ele a suspeita dos amigos e da esposa: “Você deve ter feito algo de muito grave para que tudo isso esteja te acontecendo”. Este Jó desolado clama: “Estou cansado de viver. Vou me desabafar e falar da amargura que tenho no coração. Ó Deus, não me condenes!” (Jó 10.1-2a). “Por que os infelizes continuam vendo a luz?”; queixa-se Jó (3. 20). A desgraça é tanta que ele amaldiçoa o dia em que nasceu. Um homem arruinado, massacrado pela vida, que confessa sua fé, se revolta, chora sua dor e questiona Deus sobre seu triste destino. Jó toca em nossa fragilidade. Johannes Brahms chegou a compor uma peça só com as perguntas de Jó.

Queremos entender por que estamos passando pelo que estamos passando. Quando o sofrimento é demais há quem chegue a querer que tudo acabe de uma vez. Como Moisés, quando sentiu que o trabalho de liderar os hebreus era pesado demais, pediu: “se vais me tratar desse jeito, tem pena de mim e mata-me! Se gostas de mim, não deixes que eu continue sofrendo desse jeito!” (Números 11.15). Como o profeta Elias que, acuado – com as ameaças de morte da rainha Jezabel –, andou o dia inteiro pelo deserto até que “sentou-se na sombra de uma árvore e teve vontade de morrer. Então, orou assim: Já chega, ó Deus Eterno! Acaba agora com a minha vida!” (1 Reis 19.4). Até mesmo o poeta Carlos Drummond de Andrade desejou morrer. Quando soube da morte de sua filha Maria Julieta, pediu para a médica que lhe dá a notícia: “me receita, por favor, um enfarto fulminante.”

Uma paciente com leucemia, sentada de lado na cama faz um sinal com a mão dando pequenos tapinhas sobre o lençol. Quer que eu sente ao seu lado. Ela encosta sua cabeça nua em meu ombro. Já não tem os longos cachos ruivos de que tanto se orgulhava. Entrelaçamos as mãos para uma oração onde coubesse dor e esperança. De repente, ela interrompe a oração entre soluços: “Jesus espera um pouco mais. Não é hora de eu ir. Jesus espera! Jesus espera!” No dia seguinte, um sábado, recebo a ligação do hospital. O pedido de Lia não havia sido atendido.


Sofrimento é a dor de Jó, desolado, abandonado e doente. É também o medo de Elias e o estresse de Moisés. É o luto de Drummond e a vontade de Lia, de ficar um pouco mais.