terça-feira, 30 de outubro de 2012

Por que comigo?

(texto de Vera Cristina Weissheimer)

“Mês após mês só tenho tido desilusões, e as minhas noites têm sido cheias de aflição. Essas noites são compridas; eu me canso de me virar na cama até de madrugada e fico perguntando: ‘Será que já é hora de levantar?’ O meu corpo está coberto de bichos e de cascas de feridas; a minha pele racha, e dela escorre pus. Os meus dias passam mais depressa do que a lançadeira do tecelão e vão embora sem deixar esperança. Lembra, ó Deus, que a minha vida é apenas um sopro; os meus olhos nunca mais verão a felicidade. Por isso, não posso ficar calado. Estou aflito, tenho de falar, preciso me queixar, pois o meu coração está cheio de amargura. Eu prefiro ser estrangulado; é melhor morrer do que viver neste meu corpo. Detesto a vida; não quero mais viver. Deixa-me em paz, pois a minha vida não vale nada. Por que nos vigias todos os dias e a todo instante nos fazes passar por provas? Quando deixarás de olhar para mim, a fim de que eu tenha um momento de sossego?” (Jó 7.3-7, 11,15,16,18).

É o lamento de alguém machucado, derrubado pela vida. Poderia ser eu ou você, mas este é Jó. Viu seus filhos morrerem, perdeu suas propriedades, e sua saúde foi deteriorando. Além de todas as dores e perdas pesa sobre ele a suspeita dos amigos e da esposa: “Você deve ter feito algo de muito grave para que tudo isso esteja te acontecendo”. Este Jó desolado clama: “Estou cansado de viver. Vou me desabafar e falar da amargura que tenho no coração. Ó Deus, não me condenes!” (Jó 10.1-2a). “Por que os infelizes continuam vendo a luz?”; queixa-se Jó (3. 20). A desgraça é tanta que ele amaldiçoa o dia em que nasceu. Um homem arruinado, massacrado pela vida, que confessa sua fé, se revolta, chora sua dor e questiona Deus sobre seu triste destino. Jó toca em nossa fragilidade. Johannes Brahms chegou a compor uma peça só com as perguntas de Jó.

Queremos entender por que estamos passando pelo que estamos passando. Quando o sofrimento é demais há quem chegue a querer que tudo acabe de uma vez. Como Moisés, quando sentiu que o trabalho de liderar os hebreus era pesado demais, pediu: “se vais me tratar desse jeito, tem pena de mim e mata-me! Se gostas de mim, não deixes que eu continue sofrendo desse jeito!” (Números 11.15). Como o profeta Elias que, acuado – com as ameaças de morte da rainha Jezabel –, andou o dia inteiro pelo deserto até que “sentou-se na sombra de uma árvore e teve vontade de morrer. Então, orou assim: Já chega, ó Deus Eterno! Acaba agora com a minha vida!” (1 Reis 19.4). Até mesmo o poeta Carlos Drummond de Andrade desejou morrer. Quando soube da morte de sua filha Maria Julieta, pediu para a médica que lhe dá a notícia: “me receita, por favor, um enfarto fulminante.”

Uma paciente com leucemia, sentada de lado na cama faz um sinal com a mão dando pequenos tapinhas sobre o lençol. Quer que eu sente ao seu lado. Ela encosta sua cabeça nua em meu ombro. Já não tem os longos cachos ruivos de que tanto se orgulhava. Entrelaçamos as mãos para uma oração onde coubesse dor e esperança. De repente, ela interrompe a oração entre soluços: “Jesus espera um pouco mais. Não é hora de eu ir. Jesus espera! Jesus espera!” No dia seguinte, um sábado, recebo a ligação do hospital. O pedido de Lia não havia sido atendido.


Sofrimento é a dor de Jó, desolado, abandonado e doente. É também o medo de Elias e o estresse de Moisés. É o luto de Drummond e a vontade de Lia, de ficar um pouco mais.








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