quinta-feira, 18 de julho de 2013

A fé não pode ser cega, nem faca amolada


(Do livro: "Quando a vida dói - livro que será lançado nas próximas semanas pela Editora Sinodal)
 
Milton Nascimento canta: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada. Agora não espero mais aquela madrugada. Vai ser, vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada. O brilho cego de paixão é fé, faca amolada”. A fé cega é faca amolada. Sendo cega, a fé torna-se fundamentalista e absurda. Sendo cega, torna-se faca amolada que corta, fere, maltrata e afasta.
Fé é essencialmente confiança e entrega. “Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito!” (Lucas 23.46) – uma das palavras ditas por Jesus na cruz nos convoca para a importância da descoberta pessoal de que somente uma entrega total nas mãos do Pai pode salvar verdadeiramente de uma vida sem sentido. Mas em questões de fé, seremos sempre aprendizes: “Mal tenho começado a crer. Em coisas de fé, vou ter que ser aprendiz até morrer”, confessa Martim Lutero. Ou como escreve Viktor E. Frankl, referindo-se aos acasos da vida: “Sou burro demais para explicá-los, mas inteligente demais para negá-los”.
Vivemos numa sociedade onde milagres são oferecidos em uma espécie de promoção, e a prosperidade é assegurada como sinal de bênção divina. E, assim, vamos afastando-nos dos sinais verdadeiros que se mostram de forma pequena e simples. Como diz o teólogo luterano Lothar C. Hoch: “O cristão protestante precisa estar aberto para o mistério do silêncio de Deus diante da dor e do sofrimento mais cruéis. Essa foi a experiência de Jesus”. Não é o fato de sermos bons que garante a intervenção de Deus, e não podemos fazer de Deus um “quebra-galho”, como alerta Dietrich Bonhoeffer.
Solange repetia incansavelmente o versículo: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. Mesmo quando já estava encolhida – como um passarinho machucado com a queda – em sua cama, ela sussurrava: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!”. Algumas vezes, pedia que eu lesse a passagem do Evangelho de Lucas onde Jesus, em agonia, se entrega nas mãos do Pai. Depois que eu lia, ela me olhava e dizia: “Até com Ele, né? A vida não foi fácil nem para o Filho de Deus, imagina, então, para mim, que sou uma pobre mortal. Dureza esta vida! Mas não há de ser nada. Bola pra frente!”. Quando ainda estava com forças para entrar em entreveros com Deus, disse: “Quando eu morrer (sei que vou morrer) e chegar lá, e se esse “lá” não for o céu, eu juro que volto e coloco Deus no Procon!”.
Solange foi uma mulher maravilhosa, incrivelmente ativa, mas em seus últimos dias preferiu a escuridão das cortinas fechadas. Silêncio no quarto era seu maior desejo. Queria gente de poucas palavras lhe fazendo companhia. Costumava dizer a quem se punha a tagarelar, recitando textos sagrados para animá-la ou contar sobre a vida do lado de fora do quarto: “Todas as palavras já foram ditas, não há mais o que dizer. Vocês falam tanto, que não consigo ouvir Deus. Quando todos param de me trazer receitas prontas de vida ou de salvação, então, quando tudo se cala, eu consigo ouvi-lo. É entre eu e Ele”.
Talvez Solange tenha entrado em contato com uma realidade que só os místicos compreendem. O frade dominicano Eckhart de Hochheim (1260-1328), mais conhecido como Mestre Eckhart, um místico, propõe que o silêncio é a coisa mais semelhante a Deus. Ora! Quem já fechou os olhos diante do silêncio da natureza e ali se sentiu fazendo parte de uma dimensão muito maior, quem sabe, sentindo-se integrado à transcendência, sabe do que Eckhart está falando.
Quanto à Solange, ela já se foi, não tive notícias dela ter passado pelo Procon, acredito que ela tenha chegado lá.
Há momentos em que somente nos cabe dobrar os joelhos e dizer: “Ó Senhor, cura-me, e ficarei curado; salva-me, e serei salvo, pois eu canto louvores a ti” (Jeremias 17.14). Quando pronuncio a palavra Deus, não pronuncio palavra que diz coisas óbvias e controláveis do dia a dia. Não. Não é palavra ao lado de outras palavras. É uma palavra que carrega o inefável, o indizível, o indefinível. Por isso é Deus.
 
 


  





[1] PARKES, Colin Murray. Luto – estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998. p. 30.

Um comentário:

Pedro Bezerra disse...

Sim também vou ao procon, não por Deus, mas pelos que "vendem" gato por lebre. Pois no silêncio profundo acredito N'Ele. Lindo texto Vera! bjs
Pedro